domingo, 10 de maio de 2020

«Cinema Paraíso», N. Júdice

VEM AÍ O CINEMA

O homem do cinema ambulante ainda passeia
a sua carrinha com altifalante nas ruas do Paraíso.
Com a voz rouca dos ecos e do microfone
avariado anuncia o filme da noite, apregoa
a força do herói e a beleza da rapariga,
e tudo naquela noite que não chegará porque
o seu tempo passou. Mas o homem conduz
a carrinha sem ver que as casas da aldeia
há muito caíram, que o clube onde os filmes
se projectavam ficou sem telhado há muitos
invernos, que já nem se vê um gato vadio
nas ruas desertas nem nos muros onde a erva 
cresce. Mas o homem, agarrando com uma
das mãos o volante, e com a outra o microfone,
continua a anunciar o filme em que todos os índios
morrem e o cowboy se casa com a forasteira
que chega da cidade, de vestido de salão
e cabelos louros bem penteados apesar
dos ventos e do sol da viagem. Atrás dele,
na carrinha, a máquina de projectar já perdeu
as lentes e a velha película, de tanto passar,
desfaz-se nos dedos. Mas o homem
continua a procurar, nas ruas do Paraíso,
a rapariga dos bilhetes para lhe pedir que o leve
até junto dos cowboys, dos índios e da forasteira
loura, para lhes ensinar o caminho até ao grande ecrã que
o vento rasgou e ondula, como grande bandeira, 
nas ruas do Paraíso.


Nuno Júdice, O Mito de Europa, 2017, pp. 61-62

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