segunda-feira, 20 de junho de 2022

O menino que aprendeu a ler nos anúncios dos filmes (Jorge Calado)

 "Aprendi a ler por curiosidade. Deitado no chão de barriga para baixo, debruçado sobre a página três d'O Século gostava de decifrar os anúncios vistosos - embora a preto e branco - dos filmes em exibição nos cinemas de Lisboa: primeiro os títulos, depois e mais complicado, os nomes das estrelas, quase sempre estrangeiras. Já tinha decorado as letras do alfabeto mas não as sabia juntar. Por isso ia perguntando à minha mãe e ao meu pai: «como se lê g-u-e?», e assim sucessivamente. (Seria, talvez, o filme Sangue  e Arena, com Tyrone Power e Rita Hayworth). Até que um dia lhes anunciei que no Capitólio ou no Condes ia o filme tal e tal, e eles descobriram com espanto que era verdade! Poucos meses depois, quando completei cinco anos, tive duas prendas inusitadas: uma modesta sacola [...] e a primeira ida ao cinema, ao Éden, para ver o Aniki Bóbó (1942), de Manuel. de Oliveira. Os dois presentes estavam ligados: aprendera a ler motivado pelos bonecos do cinema."

Jorge Calado, Mocidade portuguesa - Olhares, 2022, p. 83