terça-feira, 18 de agosto de 2020

«ingmar bergman», Nuno Júdice

                                    TERAPIA

O ingmar bergman gostava de bolachas
maria, e tinha sempre com ele um pacote para ir
comendo quando o estômago lhe doía. Em vão
a Morte, para o distrair, lhe punha à frente
o tabuleiro de xadrez; de nada servia a jovem
mónica despir os seios para que o desejo
saísse de dentro da blusa; e foi inútil terem 
queimado a bruxa, à frente dos artistas 
ambulantes, como se alguém pensasse que 
ela trocaria o amor pelo Bode dos Infernos. Sempre,
o bergman tirava as bolachas do bolso e comia,
uma após outra, para que a Morte não lhe desse 
o xeque-mate, a mónica não voltasses a cobrir 
os seios e a bruxa não se benzesse em frente
do Bode. Não sei porquê, também eu gosto
de bolachas maria, e quando as como não penso
na Morte, ainda menos na jovem de seios 
despidos, e nem pensar que olho para a fogueira
onde a bruxa arde sem um grito. A única coisa
que me faz doer o estômago, como ao bergman,
é não saber, quando as tenho na boca, porque
é que as bolachas se chamam maria.

Nuno Júdice, Regresso a um cenário campestre, 2020, p. 77

segunda-feira, 18 de maio de 2020

«jean seberg», Nuno Júdice

O EFEITO DO CINEMA NA CABEÇA DE QUEM NÃO VAI AO CINEMA

A jean seberg vendia o herald tribune nos filmes
de godard, e eu procurava troco na carteira
para lhe comprar o jornal. Ela dizia-me que
não era preciso dar troco, e eu dava-lhe uma nota
para ela me dar o jornal, e era como se já 
o tivesse lido nos seus olhos. A jean seberg
tinha cortado o cabelo para aparecer nos filmes
de godard como um efebo, e quando eu lhe comprava
o jornal era como se ela me dissesse que estava 
a comprar uma ambiguidade de sexos, que
não vinha na primeira página do jornal, mas 
que eu podia ler nos seus lábios quando ela
me pedia que não lhe desse troco, e eu me limitava
a dar-lhe uma nota para não ter de andar mais tempo
à procura de moedas, o que me impedia de
olhar para os seus olhos onde podia ler a
previsão meteorológica para o próximo milénio,
como se jean seberg fosse o céu sem estações
e no seu rosto se fixasse a eternidade de uma 
beleza sem princípio nem fim. Mas isso era
quando a jean seberg aparecia nos filmes de godard,
e quando deixou de aparecer o tempo voltou
ao seu ritmo normal, o herald tribune deixou
de me interessar, e já não precisava de procurar
trocos para comprar jornais que nunca iria ler,
porque o que eu queria ler estava nos olhos
de jean seberg, e eles tinham-se apagado.


Nuno Júdice, Guia de conceitos básicos, 2010, pp. 70,71

domingo, 10 de maio de 2020

«Cinema Paraíso», N. Júdice

VEM AÍ O CINEMA

O homem do cinema ambulante ainda passeia
a sua carrinha com altifalante nas ruas do Paraíso.
Com a voz rouca dos ecos e do microfone
avariado anuncia o filme da noite, apregoa
a força do herói e a beleza da rapariga,
e tudo naquela noite que não chegará porque
o seu tempo passou. Mas o homem conduz
a carrinha sem ver que as casas da aldeia
há muito caíram, que o clube onde os filmes
se projectavam ficou sem telhado há muitos
invernos, que já nem se vê um gato vadio
nas ruas desertas nem nos muros onde a erva 
cresce. Mas o homem, agarrando com uma
das mãos o volante, e com a outra o microfone,
continua a anunciar o filme em que todos os índios
morrem e o cowboy se casa com a forasteira
que chega da cidade, de vestido de salão
e cabelos louros bem penteados apesar
dos ventos e do sol da viagem. Atrás dele,
na carrinha, a máquina de projectar já perdeu
as lentes e a velha película, de tanto passar,
desfaz-se nos dedos. Mas o homem
continua a procurar, nas ruas do Paraíso,
a rapariga dos bilhetes para lhe pedir que o leve
até junto dos cowboys, dos índios e da forasteira
loura, para lhes ensinar o caminho até ao grande ecrã que
o vento rasgou e ondula, como grande bandeira, 
nas ruas do Paraíso.


Nuno Júdice, O Mito de Europa, 2017, pp. 61-62

sexta-feira, 24 de abril de 2020

«Cinemínimo» - M. do Rosário Pedreira

- no verbete de hoje, M. do R. P. explica por que é esta  a sua última crónica - dedicada ao (seu) percurso de espectadora e (à alteração dos) «aos modos de ver» Cinema
RECORTE:
[...] Eu comecei a ver cinema em criança nas férias de Verão, nos Bombeiros do Estoril, ainda com meia sala ao ar livre; os cortes da censura ainda eram visíveis como bainhas mal costuradas, mas toda a gente entrava, independentemente da idade. Foi lá que vi, por exemplo, Blow-Up ou Os Cavalos também Se Abatem com 9 ou 10 anos, embora aos 14, já em Lisboa, a minha mãe me tenha proibido de ir ver Amarcord com rapazes... [...]

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Ir ao Cinema, «pós-Covid»

- 6 horas, o habitual (primeiro) desligar da MÁQ APN
- duas filas, na escadaria para a bilheteira, a lembrar a do S. Jorge, mas mais alta; numa delas está D., sem saber para que filme irá comprar Ingresso [...] 
- grande balcão, em cima do qual está um saco com cerca de três quilos de maçãs, metade «Royal Gala», metade «Bravo Esmolfe», e um pequeno molho de notas de cinco euros [...]
- o vendedor: "Vai ser dois bilhetes, não?"; [em fundo, Cartazes, com imagens da II Guerra Mundial];  D. respondia que era só um, quando uma ventoinha, repentinamente ligada, fez voar as notas em todas as direcções; 
- corre pelo átrio a apanhá-las, sem ajuda de ninguém das Filas; regressa com oito (40 euros); ao mostrá-las ao vendedor, ouve-se os protestos de quem espera, e é informado que estavam 250 Euros (50 notas) no molho [...]
- sonhos «corivídicos»?

sexta-feira, 17 de abril de 2020

«A última sessão» - Dulce Cardoso

[.. é o título do filme de 1970, de Peter Bogdanovich...]; nesta narrativa de 23 - 03, D. M. C. evoca as idas ao Cinema na Luanda da Infância...

RECORTE INICIAL:
    Fazia finalmente parte do grupo das matinés dos mais velhos. É certo que isso acontecera por imposição da minha mãe e não por vontade da minha irmã e dos restantes membros do grupo, mas não me interessava. Ir ao Miramar sem ser atrelada a um adulto causou-me borboletas na barriga, sentia-me livre, ainda que não o soubesse nomear.
       Parámos à entrada, em frente dos cartazes, e o Rui tentou adivinhar a história do filme que íamos ver, Dois Homens e Um Destino. A minha irmã e a Editinha suspiraram pelo Paul Newman, O Robert Redford também é um grande borracho, disse a Anita. O Garrincha e o Nando garantiram a pés juntos que nenhuma mulher sorria como a Katharine Ross. Não conseguia repetir os nomes dos atores e parte das conversas da minha irmã e dos seus amigos era-me incompreensível. Quando o filme começou e me submergiu num mundo tecnicolor, estremeci com o impacto violento do som, a brisa arrepiou-me, o Miramar não tinha paredes e usava o céu como teto, a Baía de Luanda ficava logo atrás do ecrã gigante, havia os jardins em socalcos, era tudo tão diferente, tão maior, tão mais bonito do que o África, o cinema do nosso bairro. Era difícil seguir o enredo, a rapidez com que as legendas se sucediam atrapalhava-me a leitura, estava sempre a perguntar à minha irmã, O que é que eles disseram?, a maior parte das vezes recebia de volta uma cotovelada, Se não te calas nunca mais te trago.
[...]
[Página com as narrativas já publicadas até à data: AQUI]

terça-feira, 10 de março de 2020

«...meu irmão humphrey bogart», Ruy Belo

HUMPHREY BOGART

Era a cara que tinha e foi-se embora
mas nunca foi tão visto como agora
O seu olhar é água pura água
devassa-nos dá nome mesmo à mágoa
Ganhámo-lo ao perdê-lo. Não se perde um olhar
não é verdade meu irmão humphrey bogart?

Ruy Belo, Homem de palavra(s), 1970