segunda-feira, 18 de maio de 2020

«jean seberg», Nuno Júdice

O EFEITO DO CINEMA NA CABEÇA DE QUEM NÃO VAI AO CINEMA

A jean seberg vendia o herald tribune nos filmes
de godard, e eu procurava troco na carteira
para lhe comprar o jornal. Ela dizia-me que
não era preciso dar troco, e eu dava-lhe uma nota
para ela me dar o jornal, e era como se já 
o tivesse lido nos seus olhos. A jean seberg
tinha cortado o cabelo para aparecer nos filmes
de godard como um efebo, e quando eu lhe comprava
o jornal era como se ela me dissesse que estava 
a comprar uma ambiguidade de sexos, que
não vinha na primeira página do jornal, mas 
que eu podia ler nos seus lábios quando ela
me pedia que não lhe desse troco, e eu me limitava
a dar-lhe uma nota para não ter de andar mais tempo
à procura de moedas, o que me impedia de
olhar para os seus olhos onde podia ler a
previsão meteorológica para o próximo milénio,
como se jean seberg fosse o céu sem estações
e no seu rosto se fixasse a eternidade de uma 
beleza sem princípio nem fim. Mas isso era
quando a jean seberg aparecia nos filmes de godard,
e quando deixou de aparecer o tempo voltou
ao seu ritmo normal, o herald tribune deixou
de me interessar, e já não precisava de procurar
trocos para comprar jornais que nunca iria ler,
porque o que eu queria ler estava nos olhos
de jean seberg, e eles tinham-se apagado.


Nuno Júdice, Guia de conceitos básicos, 2010, pp. 70,71

domingo, 10 de maio de 2020

«Cinema Paraíso», N. Júdice

VEM AÍ O CINEMA

O homem do cinema ambulante ainda passeia
a sua carrinha com altifalante nas ruas do Paraíso.
Com a voz rouca dos ecos e do microfone
avariado anuncia o filme da noite, apregoa
a força do herói e a beleza da rapariga,
e tudo naquela noite que não chegará porque
o seu tempo passou. Mas o homem conduz
a carrinha sem ver que as casas da aldeia
há muito caíram, que o clube onde os filmes
se projectavam ficou sem telhado há muitos
invernos, que já nem se vê um gato vadio
nas ruas desertas nem nos muros onde a erva 
cresce. Mas o homem, agarrando com uma
das mãos o volante, e com a outra o microfone,
continua a anunciar o filme em que todos os índios
morrem e o cowboy se casa com a forasteira
que chega da cidade, de vestido de salão
e cabelos louros bem penteados apesar
dos ventos e do sol da viagem. Atrás dele,
na carrinha, a máquina de projectar já perdeu
as lentes e a velha película, de tanto passar,
desfaz-se nos dedos. Mas o homem
continua a procurar, nas ruas do Paraíso,
a rapariga dos bilhetes para lhe pedir que o leve
até junto dos cowboys, dos índios e da forasteira
loura, para lhes ensinar o caminho até ao grande ecrã que
o vento rasgou e ondula, como grande bandeira, 
nas ruas do Paraíso.


Nuno Júdice, O Mito de Europa, 2017, pp. 61-62